quarta-feira, 30 de julho de 2008

Contra o que lutamos?

Um texto bastante conhecido, mais pela beleza literária e poética do que pela plena compreensão das implicações que o mesmo encerra é aquele que fala da armadura com a qual precisamos estar cingidos para as lutas do dia-a-dia.
Os componentes do kit de sobrevivência para quem deseje passar pela batalha da vida e sobreviver estão ali descritos: verdade, justiça, a mente em estado de alerta quanto ao que seja realmente uma boa notícia e de onde vem a paz (não do poder estabelecido mas da periferia do império), uma inabalável esperança calcada na confiança e credibilidade de Deus, o que nos ajuda a combater o “realismo” dominante que tenta cooptar ou domesticar o possível, a restauração de áreas outrora caóticas de nossas vidas; o manejo e o conhecimento da Palavra de Deus feito com expertise e arte; a prática da oração e da súplica por si e por outros como forma de manter-se em posição adequada de humildade e dependência.
No entanto, e apesar de estas já serem em si orientações extremamente relevantes, é no foco da luta da vida que eu gostaria de gastar um tempo hoje.
O texto diz que nossa luta não é contra sangue e carne. Isso quer dizer que quando nos damos conta de contra quem lutamos, chegamos à conclusão de que nenhum ser humano é, ou pode ser considerado, o objetivo contra o qual lutamos. Eleger inimigos, sejam eles pessoais ou genéricos, dando a eles nomes próprios ou de grupos (homosexuais, direitistas, esquerdistas, machistas, patrões, sindicalistas, conservadores ou liberais) é perder de vista o ponto e simplificar a luta ao rótulo que alguém ostenta e errar o alvo.
Meu inimigo nunca é meu irmão, seja ele quem for. Mesmo que ele se considere meu inimigo, mesmo que ele ou ela pessoalmente me odeiem.
O texto diz: nosso alvo são "poderes e autoridades"; em grego archia e exousia. Para deixar mais claro diz “contra os dominadores deste mundo tenebroso” e mais “contra forças espirituais do mal”. Quando chega nesse ponto o passo mais fácil é dar um pulo e espiritualizar tais conceitos e começar a caçar fantasmas e capetas em tudo que é armário. Vamos com calma.
Tudo tem lá a sua espiritualidade, um sopro que anima cada coisa, e esse sopro pode ser para a vida ou para a morte. A maior bobagem é tentar entender o mundo sem a compreensão de que o que nos anima é sempre uma forma de espiritualidade. A busca de consumo desenfreado, a luta de poder e o prazer a qualquer custo são demonstrações de valores animadores, de um convencimento de que a vida é para ser consumida, usufruída e uma fonte de prazer egoísta. Isso é uma espiritualidade. E anima o mercado, governos e o marketing, basta olhar.
O texto nos lembra que nossa luta não é contra o dono do supermercado, contra a pessoa do político ou o marqueteiro. Nossa luta, e ela existe, é contra o sistema que torna possível tal estado de coisas, animado por um tipo de espiritualidade destrutiva e corrosiva, além de antropocêntrica e insustentável.


É o sistema que torna tal estado de coisas que é nosso alvo de luta. É seu desmantelamento que promovemos, e não sua melhoria. Nesse sentido o chamado cristão é e sempre foi revolucionário, indesejável e ameaçador.
O sistema de poder e domínio que controla o mundo, que induz ao uso de transportes poluentes, que consome hoje sem levar em consideração o futuro de filhos e netos, que enfeia tudo e borra toda arte, beleza, harmonia e poesia, que reduz a cultura ao entretenimento, que escolariza crianças para se tornarem servos do mercado e recursos consumíveis numa roda viva de busca de dinheiro, que joga uma massa de adolescentes e jovens na apatia e no adormecimento, que considera a violência, contra o cidadão ou contra o bandido ou o do outro time, como algo banal e justificável, que afasta mães e pais de seus filhos oferecendo “cuidados” integrais para que aqueles continuem uma vida de escravidão ao trabalho, que transforma a tudo e a todos em commodities e que no fim de tudo oferece um carnaval ou uma religião do “pare de sofrer e ganhe sempre”, que acha tudo desnecessário e radical desmerecendo a alternativa, ora perseguindo-a ora tratando com descaso, que come carne demais e cozinha de menos, esse sistema é que deve ser combatido.
Da mesma forma a igreja combateu os valores e espiritualidade do Império Romano, da mesma forma os profetas combateram os sistemas dos reis de cada época, do mesmo modo os artistas denunciaram as ditaduras e cantaram seu fim. Somos chamados a nos insurgir e viver em desacordo com os poderes e autoridades deste mundo tenebroso, super aquecido, poluído e dominado pelo mercado.

Somos chamados a, em meio à pressão para consumir, sermos moderados, em meio à busca de prazer, praticar a renúncia, em meio à pressa, andar de bicicleta e a pé, quando pressionados a viajar, aprender a ficar, quando o caminho fácil for o video-game, reaprender a brincar com o filho, desligar a TV e passear no quarteirão. A dizer não obrigado ao governo e às autoridades e cuidar de nossa própria vida com nossa própria força e autopropulsão.
A entender que o que precisamos não é de mais, é de menos, e que uma nova espiritualidade está ao alcance da mão, e dela podemos receber a animação para a vida.

Um comentário:

Luis Patricio disse...

Algumas reflexões sobre o sistema...