quarta-feira, 27 de maio de 2009

Dezenove Teses para trabalhar

Bem queridos, eis que aqui exponho 19 teses, abordadas originalmente pelo Professor Walter Brueggemann em uma conversa na All Souls Fellowship em 2004, e que transcrevo aqui com alguma adequação idiomática.

Estas teses ajudam a dar um todo a uma série de falas e modos de ser que venho trabalhando faz tempo. Assim resumem e poupam tempo.

Minha intenção é, nas próximas semanas, comentar uma por vez, discutir em pequenos textos e provocar mais e mais ambivalência, tensão e um pouco de crise, com o sentido explicito de permitir a emergência de sínteses melhores.

As teses tem como finalidade discutir o papel do ministério, não com nenhuma intenção reformista ou revolucionária, mas explicitamente de dar seqüência ao abandono de uma narrativa exaustjva, plana, cansativa e que só funciona em condições IDEAIS de temperatura e pressão, e que substitui uma narrativa muito mais interessante - que será o objeto de minha próxima postagem, bem como do próximo vídeo que produzirei na semana que vem.

Por enquanto, fiquem com o incômodo e com o desconforto destas teses, que vem logo após a citação de um escrito de meu autor predileto: Ivan Illich. Boa Leitura, e bom desconforto.


Nem a revolução nem a reforma podem, por fim, mudar a sociedade. Mais do que isso, deve-se contar uma nova e poderosa narrativa, uma tão persuasiva que varra para longe os velhos mitos e se torne a história predileta, uma tão inclusiva que junte todos os pedaços de nosso passado e nosso presente em um todo coerente, uma que mesmo seja capaz de jogar alguma luz sobre o futuro, de modo que nós possamos dar o próximo passo” - Ivan Illich


1. Todo mundo vive seguindo um script, ou melhor em português, um roteiro. O roteiro pode ser implícito ou explícito. Pode ser reconhecido ou não reconhecido, mas todo mundo tem um roteiro.


2. Nós somos “roteirizados”. Todos nós obtemos nossos roteiros através do processo de cuidado que recebemos, da formação e da socialização, e isso acontece conosco sem o nosso conhecimento.


3. A roteirização dominante na nossa sociedade é a de um roteiro de consumismo militante tecnológico e terapêutico, que nos socializa a todos, liberais ou conservadores.


4.Este roteiro (tecnológico, terapêutico e de consumismo militante) é transformado em lei através da publicidade, da propaganda e da ideologia, especialmente nas liturgias da televisão e promete fazer-nos sentir e viver mais seguros e tornar-nos mais felizes.


5. Esse roteiro falhou. Esse roteiro de consumismo militante não pode fazer-nos seguros e não pode fazer-nos felizes. Provavelmente somos a sociedade mais infeliz em todo o mundo.


6. Saúde para a nossa sociedade depende do desengajamento e do abandono de nosso compromisso com o consumismo militante. Esta é uma retirada e uma desistência à qual resistimos e sobre a qual somos profundamente ambíguos.

7. É a tarefa do ministério “desroteirizar” este roteiro de nosso meio. Isto é também, permitir às pessoas abandonar um mundo que já não existe e, que na verdade nunca existiu.Negrito


8. A tarefa de desroteirizar, renunciar e desengajar-se é realizada por uma constante, paciente e intencional articulação de um roteiro alternativo que pode nos dar a consciência da felicidade e da segurança. (com as quais nascemos: para maior compreensão ler Anthony de Mello: Awareness ou, em português, “despertando para o eu”)


9. O roteiro alternativo está enraizado na Bíblia e é promulgado através da tradição da Igreja. É a oferta de uma contra-narrativa, para contrariar o roteiro de consumismo militante baseado na fé no poder da tecnologia e da terapêutica.


10. Esse roteiro alternativo tem como sua maior característica, a sua personagem-chave - o Deus da Bíblia, a quem nomeamos como Pai, Filho e Espírito Santo.


11. Este roteiro não é monolítico, uni-dimensional ou sem rupturas e interrupções. É áspero e disjuntivo e incoerente. Em parte, é imperfeito, disjuntivo e incoerente, pois o mesmo foi elaborado ao longo do tempo por muitos grupos e comitês. Mas também é desigual e disjuntivo e incoerente, porque o personagem-chave é ilusivo e irrascível quanto a sua liberdade e sua soberania e na pouca revelação de si, e estou envergonhado de dizer, na violência – um enorme problema para nós.


12. A qualidade esfarrapada, disjuntiva e incoerente do contra-roteiro do qual testemunhamos, não pode ser suavizada ou tornada sem costuras ou remendos. [Penso que o escritor do Salmo 119 teria provavelmente gostado de torná-lo sem costura]. Porque quando nós fazemos isso, o roteiro que recebemos se tornar plano e domesticado. [Esta é a minha polêmica contra a teologia sistemática]. O roteiro se torna plano, domesticado e torna-se um fraco eco do roteiro dominante do consumismo militante baseado na fé no ponto de vista tecnológico e terapêutico da sociedade. Enquanto o roteiro dominante de consumismo tecnológico militante é todo sobre certezas, privilégios e direitos, este contra-roteiro não é sobre certeza, privilégio e direito. Assim, cuidados devem ser tomados para deixar esse roteiro ser o que é, o que implica deixar Deus ser o Deus que é, mesmo o Deus irascível que é, se for o caso.


13. O aspecto descontinuo e disjuntivo do personagem do contra-roteiro do qual testemunhamos, acaba por estimular seus seguidores a brigarem entre si - liberais e conservadores - de forma que a principal reivindicação da roteiro acaba prejudicada e assim também debilitar a atenção no foco do roteiro.


14. O ponto de entrada na contra-roteiro é chamado de batismo. Pelo que dizemos nas antigas liturgias: "Você renuncia ao roteiro dominante?"


15. O cuidado e o cultivo, a formação e a socialização para viver dentro deste contra-roteiro, com este personagem ilusivo, incerto e irascível é o trabalho do ministério. Nós fazemos o trabalho de cuidar, de formar e socializar através das práticas da pregação, da liturgia,da educação,da ação social,da espiritualidade, e de atos de vizinhança de todos os tipos.


16. A maioria de nós somos ambíguos com relação ao roteiro, aqueles de nós a quem ministramos e, ouso dizer, aqueles de nós que ministramos. A maioria de nós não estamos nos locais mais profundos, esperando para poder escolher entre o roteiro dominante e o contra-roteiro. A maioria de nós quando estamos nos lugares mais profundos somos vacilantes e balbuciantes em nossa ambivalência.


17. Esta ambivalência entre os roteiros é justamente a principal jurisdição para o Espírito. De tal forma que “ministério” é nomear e aumentar a ambivalência que liberais e conservadores têm em comum, que põe as pessoas em crise e que, consequentemente, invoca resistência e hostilidade.


18. Ministério é gerenciar essa ambivalência, que é igualmente presente entre liberais e conservadores, de maneira original mas cheios de fidelidade de modo a permitir a desistência do velho de roteiro e o acolhimento do novo roteiro.


19. O trabalho do ministério é central, crucial e indispensável em nossa sociedade justamente porque não há ninguém [há de se ver se isso não é um exagero, mas fiquemos por aqui por enquanto], não existe outra coisa, exceto a igreja e a sinagoga, para nomear e evocar a ambivalência e, também, administrar o caminho através dela. Penso muitas vezes, ao ver o dia-a-dia de coisas mundanas que os ministros têm de fazer, e eu penso: meu Deus, o que aconteceria se você retirasse todos os ministros?!? Assim, o papel do ministério é tão urgente quanto é extraordinário e difícil.


quarta-feira, 13 de maio de 2009

Lealdade.... a Quem?


Uma das coisas que tenho como fundamentais em minha vida é a compreensão do que vem a ser isto de tornar-se um seguidor de Jesus. A mudança que está implícita nesta decisão não é de natureza filosófica ou mesmo religiosa e reduzir este processo a isso - ainda que estes componentes até possam existir como parte - é perder o ponto central desse seguimento.

Tornar-se um seguidor de Jesus tem a ver com algo muito mais implicador e comprometedor do que uma mera mudança religiosa, ou assunção de uma nova filosofia de vida. A mudança que se dá, e à qual somos convidados e convidadas por Jesus, é traduzida por um outro definidor: uma transferência de plataforma de lealdade, uma mudança para além do comportamento ou da crença, uma ruptura com lealdades assumidas previamente e o comprometimento da vida com outra lealdade, que começa no coração, a partir dali.

Esse processo, por esta definição, não acontece de uma vez por todas, mas passa a ter um caráter diário e dinâmico, seja por não estar definido por nenhum conteúdo pré-determinado e consolidado em uma série de regras escritas, seja por permitir o aprofundamento constante e o conhecimento em níveis cada vez mais simples e mais complexos ou seja por ser fruto de uma relação e não de uma declaração.

Quando me refiro à lealdade podemos ver que esta característica nos é requerida por vários dos atores com os quais pisamos este palco da vida. No tempo presente, os mais óbvios são o Estado e o Mercado,

que vem se degladiando de forma crescente pela hegemonia das relações de lealdade em nosso coração nos últimos 500 anos. No entanto, laços de família, de cosangüinidade, raciais, sexuais, profissionais, empresariais, religiosos, filosóficos, políticos e funcionais jogam este mesmo jogo de busca de hegemonia sobre noss vida, normalmente em papéis mais secundários, ainda que presentes e bem visíveis em nosso dia-a-dia. Tudo luta pela lealdade de nosso coração, e é fácil verificar onde está a de cada um, pela observação de nossas atitudes, alianças e gasto de tempo. Basta um pouco de honestidade para se olhar no espelho.

No caso do Estado, a pátria, invenção muito recente, reclama nossa lealdade e a capacidade de dedicarmo-nos a “deveres cívicos” e “direitos reconhecidos”, como o de matar,prender, taxar, votar, denunciar e se deixar controlar por leis nem sempre do interesse das pessoas ou das relações. O mercado , hoje o usurpador mais presente, exige de nossa vida horas, dias e anos de preparação para servi-lo, impõe sobre nós valores que são destruidores de pessoas e de convívios através da competitividade, da velocidade e das poucas horas de parada. Estabelece relações permitidas, proibidas, interessantes e desinteressantes, destrói famílias, usurpa maternidades e corrói o companheirismo.

Assim como no antigo Império Romano, ambos e todos os agentes citados acima admitem qualquer postura que um indivíduo tome, desde que essas não comprometam o central para para o sistema; aceitam qualquer fé, desde que não interfira na prática de ninguém nem questionem os sacrossantos princípios como o consumo, o crédito, a delegação representativa, a subserviência a normas impostas, a escolarização compulsória, a apatia diante do mal.

Assim como no  já citado Império Romano, aparece o Cristo que diz ontem como hoje: “Me segue”. E com essa simples frase, confronta o sistema, desafia a lealdade incontestável, relativiza o absoluto. Ao nos chamar para se tornar seus seguidores, copiar seus passos e assumir sua vida, chama também a uma nova lealdade que implica em mudanças de hábito, modo de pensar e de agir, e nos coloca em outro campo, oposto e alternativo ao que ai está.

Como forma de exemplificar o que significa isso para mim, costumo responder aos questionamentos que me fazem sobre porque faço ou deixo de fazer determinadas coisas com uma frase comum: “Porque no meu país é assim que a gente faz”. 

Assim, eu prefiro a bicicleta, por que no meu país ninguém usa motor a combustão para se locomover, lá as pessoas andam, e se cumprimentam, adoram um papo e passeiam todo fim de tarde no jardim com o Rei do lugar. Além disso, lá a gente não come bichos, pois o leão e o cordeiro são amigos e brincam um com o outro, e mesmo as crianças de colo podem brincar com texugos e outros animais aqui chamados de perigosos, e todos nós cultivamos o princípio de não derramar sangue e preferir buscar nas plantas nossa vida, nossa nutrição e saúde. Lá no meu país, as portas nunca se fecham, ficam sempre abertas, como diria Marisa Monte, pra sorte entrar. Comemos pão e vinho para celebrar numa mesa enorme a alegria da vida que tem sempre a vitória final.

Lá no meu país, assim como em Pasargada, somos todos amigos do Rei, que assim sendo nos chama de irmãos. Sentamos debaixo de uma árvore Viva e lá batemos papos de sabedoria sobre o bem, esquecendo do mal. E também lá não se vota pois o sistema é uma monarquia dirigida por juízes que ganharam esta função por serem retos, comprometidos com a verdade e a integridade, e na verdade, todos no meu país exercem tal função.

Lá no meu país, as ruas são de ouro e as maçanetas são de diamante, e ... não, não pense que é frescura de burguês, é por que lá essas coisas não são valores, só servem mesmo pra asfaltar e para complementar as casas que guardam nosso maior, único e verdadeiro tesouro: As pessoas.

Lá no meu país, ao qual sou completamente leal, não tem nenhum templo, por que a presença de Deus está em todos os lugares, e o verdadeiro lugar de adoração se constrói a cada encontro de corações leais e sinceros ao nosso Deus. A vida diária é um culto só, uma celebração de vida, pão fresco e vinho.

Ainda lá no meu país, ninguém toma antidepressivo, pois que todas as lágrimas são enxugadas. Também lá, os velhos tem um lugar especial, e nós os chamamos de anciãos. Eles nos dirigem em nossas atividades e relações com nosso Rei. Outra coisa é que os mais desprezados nos mais diversos países, emigraram para lá – alguns prematuramente - todos os mártires, todas as mulheres que sofrem injustiça, todas as crianças usurpadas, e lá encontraram plena cidadania, sendo que a cada um são dadas vestes brancas e um lugar de destaque.

Lá no meu país... lá onde está o meu tesouro... lá onde mora minha lealdade.

E ai, enquanto estou aqui neste país, ajo como embaixador do meu, cumprindo minha vida de um jeitão que aqui acham esquisito, e apesar de limitado e submetido a normas locais, sempre que pressionado, sei a quem pertence minha lealdade, então coloco limites. Tento não incomodar muito, e viver em paz, fazendo tudo o que não rompa com os princípios a que sou leal no meu país. E à medida que vou percebendo que algo deste país aqui me faz agir de forma diferente do que agiria no meu país, busco mudar o modo de pensar, re-aprender como se faz lá e daí mudo, inverto e saio por ai seguindo o jeitão do meu país.

De vez em quando pareço esquisito, como é comum com aqueles que falam outro sotaque, usam roupas típicas ou comem comidas de suas terras. Mas na medida que outros cidadãos de lá se encontram aqui, a gente se reúne em uma espécie de CTG à nossa moda, onde celebramos nossas tradições e identidade nacional.

E aguardamos... até o dia em que, ou nosso Rei em visita por aqui nos chamar de volta ou vier retomar as partes que lhe pertencem e que lhe foram usurpadas.

Até lá permaneço leal a Ele, buscando segui-lo e me arriscando a ser tomado por criminoso ou refratário cada vez que questiono, desobedeço a leis ou valores locais ou faço algo que só faz sentido mesmo em país como o meu - e nenhum aqui. Mandado pelo meu Rei, a quem celebro,  espero enquanto nesse exílio longo, mas cheio de compromissos com o futuro, o dia de viver para sempre por lá.