quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Invertendo a relação entre ricos e pobres

Deus criou o Homo sapiens, e o criou à sua imagem e semelhança. E nós como espécie criamos formas posteriores, que se chamam Homo educandus - aquele que precisa ser educado para ser alguém 

-, Homo economicus - aquele que precisa ter suas necessidades mediadas diante de uma escassez artificialmente concebida por meio do dinheiro- e finalmente no século XX,duas novas espeecies o Homo sistematicus - que depende dos sistemas para sobreviver , entre eles o de saúde, educação, transporte, distribuição, informação e sua mais recente sub-espécie, o Homo miserabilis - este ser individual, solitário, que não sabe fazer nada e precisa que lhe dêem tudo e que vive oprimido pela frustração e ansiedade, dependente de que alguém no governo ou no mercado cuide dele, lhe sirva, resolva seus problemas e o mantenha vivo. Uma clara involução e desumanização da espécie.

Aquele ser criado Homo sapiens, não se fez humano por seus atributos biológicos - que certamente o hominizam - mas sobretudo por algumas fagulhas não genéticas, complexas, interativadas, transcendentes, imensuráveis que se traduzem pelo termo Espírito, Ruach em hebraico, que se define exatamente por esta parte de nós que é comum a todos e mesmo assim nos permitem sermos pessoas particulares, únicas e variadas.

Esse mistério, a Bíblia insere na concepção de semelhança e imagem de Deus em nós. E é precisamente esta semelhança que nos humaniza. No entanto, esta semelhança esta ligada a um outro aspecto que nos é próprio: a vontade. Este Homo Sapiens, pleno e semelhante a Deus, criado com vontade possui uma vocação ontológica presente neste binômio, e plenamente exercida como fruto da interação destes dois aspectos: a liberdade.

Estranhamente a relação da vontade, do espírito humano e da liberdade consegue somente ser experimentada e exercida de forma plena quando a vontade se impõe a auto renúncia, quando o espírito humano se dispõe à conexão e à concepção do sagrado e quando a liberdade leva em conta a existência de limites marcados pela existência do outro e e se enxerga como parte e não proprietário da criação.

Nasceu com este mesmo ser humano tanto a liberdade quanto a possibilidade da escravidão. Desde o início elas penetram pelo mesmo caminho, independente da época, do contexto e do sistema no qual ocorrem. Pelo questionamento do sagrado, a transposição dos limites e a negação da renúncia repete-se o sacrifício da primeira em prol da segunda.

Imediatamente ao serem introduzidos estes elementos, inicia-se o processo de desumanização assistido em todos os períodos da história, em todos os sistemas e em todas as formas de produção. No entanto, vivemos seguramente pela primeira vez a extensão destes danos da escravidão em escala global, de forma universal e com a possibilidade concreta de inserir a simples, concreta e pura extinção física da espécie humana, seja por meio de hecatombes ambientais, por meio da violência ou por meio do esgotamento de recursos. É uma escala universal daquilo que a história demonstra acontecendo de modo pontual em diferentes momentos e locais, desta vez hegemonicamente impostos sobre todos os 6 bilhões de habitantes do planeta.

No entanto, ao contrário da desesperança que tal introdução possa provocar, inclusive históricamente, vemos que a liberdade e a humanização perdida não são impossibilidades, senão inéditos viáveis, surpreendentemente persistentes e ontologicamente inseridos como vocação da espécie. Ainda mais, como espécie criada, a boa notícia é que apesar de provocarmos a ira e a tristeza daquele que nos criou, não fomos por este mesmo abandonados.

Seja nas narrativas de Noé, ou de Moisés, na gênese de um povo que substitui deuses a serviço do Rei, por um povo sem rei porém pleno de ética, concepção de próximo e cuidado ambiental, seja no lamento dos profetas, em suas denúncias e na proclamação de sua esperança, recebemos a anunciação de que, apesar de todos os atentados contra ela, é a vida e não a morte quem possui a palavra final. E a prova última deste não abandono se deu em Jesus, o Cristo, encarnação da plena humanidade, liberdade e domínio da vontade por meio da renúncia em ser Deus, para ser servo e se limitar em um contexto específico, sofrer nele e demonstrar em sua própria vida que mesmo a fronteira final, a morte, é surpreendida pelo inédito viável, ainda que aparentemente absurdo, de sua ressurreição física, concreta, no tempo e no espaço, com o testemunho dado a custa de sofrimento por mais de 500 pessoas que com ele comeram, andaram, nele tocaram e conversaram por 40 dias após sua morte e ressurreição.

Dois mil anos, e em particular os últimos 500 anos transformaram esta tremenda intervenção de Deus na história e a possibilidade deste caminho em mera religião, controlada, mercantilizada,  submetida aos mesmos princípios que hoje geram o impasse e a encruzilhada na qual se encontra a humanidade, presa entre a barbárie e a desesperança. Mas é desta mesma encruzilhada que surge a possibilidade da esperança, na medida em que Deus não se deixou sem testemunho, ainda que este não esteja ou seja visível nas estruturas da cristandade. Num mesmo ambiente crítico, co-existem a possibilidade e o desespero. De um lado a criação, incluindo os grupamentos humanos, está grávida de desejo de ver e perceber a manifestação dos filhos de Deus. Do outro, contigentes cada vez maiores se negam a crer que a presença de Deus na história se resuma somente a ambientes religiosos, principalmente quando hoje estes se manifestam de forma cada vez mais exótica, descontexualizada e individualista. Esta dupla expectativa abre a porta para o inédito de Deus acontecer.

Se sairmos da descrição mais geral feita até aqui, e descermos a aspectos tangíveis e factíveis ao nosso alcance talvez possamos, em meio a um emaranhado teórico, descobrir formas de ver esta intervenção já possível e presente.

O aspecto que gostaria de abordar neste texto é a relação entre ricos e pobres.

Guias cegos guiando a outros cegos.

Os Fariseus eram, em seu tempo, os mais profundos conhecedores e os melhores seguidores da Lei de Deus. Pessoas de comportamento impecável, corretas, bons pais, trabalhadores e cumpridores de seus deveres.

Além disso, eram conscientes de um zelo missionário que os fazia andar terras e mares e despender um enorme esforço para, como dizia Jesus, “conseguir fazer um prosélito”.

Eram não somente assim, como conscientes de sua posição como diferentes dos mundanos, resistentes à dominação de valores pagãos, criam na ressurreição e na glória de Deus.

Apesar de tudo, Jesus os chamou de guias cegos, que guiavam a outros cegos.

É impossível observar esta descrição e não identificá-la imediatamente com a igreja hoje.


Em Tiago 4:4, se dirigindo à igreja e chamando os irmãos de adulteros, e por que? Apesar de todo pocedimento religioso oposto ao do assim chamado mundo, ou pensamento dominante. Ainda assim, os valores mais básicos do sistema permaneciam intocáveis.

Era assim com os Fariseus, assim foi com a igreja que se perdia em si mesma, e assim é hoje com parte substancial da igreja.


Os mitos do desenvolvimento e do progresso


O mundo que vivemos possui uma miriade de versões, interpretações e culturas, interconectadas e disponíveis no supermercado da sociologia e da fé. No entanto, ele realmente se caracteriza por ser um Universo, uma versão única de mundo, onde talvez pudéssemos encontrar no plano de Deus o Pluriverso.

Nesse universo, nessa versão única, mitos são tidos como dados e assentados, universais e dominantes. Entre estes o mito do progresso, o do desenvolvimento, das necessidades e dos direitos Universais, a serem supridos, hora pelo Estado, ora pelo Mercado, aos quais todos estão submetidos.

Este tempo presente, este modo de pensar, nos é vendido como se sempre tenha sido assim, como se este fosse o aspecto imutável.

Neste mundo, dividem-se as pessoas entre os de dentro e os de fora, os incluídos e os excluídos, os que são e os que não são. Neste arranjo, os de dentro sentem um impulso e um dever irresistível de colocar para dentro, se não todos, ao menos aqueles que seja possível colocar, e pior, na ausência da possibilidade, ao menos os privilegiados por uma eleição.

É assim com governos, empresas, partidos, religiões e infelizmente com as igrejas.

Sem questionar se o barco tem fundo ou destino, o importante é ir e fazer o máximo de prosélitos.

Neste afã, se coloca como meta a inclusão no barco.

O barco que é indiscutível para todos se constitui de alguns mitos, a maioria de natureza economica, que atribui ao homo sapiens a sua desumanização, transformado que foi em homo miserabilis, miseravelmente dependente de educação, dinheiro, serviços, direção, saúde, transporte, saneamento, empregos, redes de distribuição de alimentos e etc. . Incapaz de cuidar de si, de sua formação, de seu ir e vir, de providenciar sua comida, lidar com seus dejetos, realizar tarefas corriqueiras, de solidariedade, de manter a saúde e de morrer, sem que alguém, estado ou mercado, disso cuide para e por ele aquele que um dia foi imagem e semelhança de Deus se reduziu a um ser escravizado e pouco mais que uma singularidade.

A criação de massas de desesperados, que de capazes de cuidar de si, se tornaram miseráveis por não poderem ter acesso a estes elementos que se tornaram necessidades e logo direitos, que enchem de frustração pessoas que tem acesso a coisas que um príncipe medieval nem sonharia (como por exemplo um vaso sanitário, luz na rua ou água encanada), leva a todos que possuem acesso pleno a estas e outras “necessidades”, ainda que insustentáveis a crerem possuir a missão divina de incluir a todos em seu estilo de vida.

Esse impeto missionário, começado na Europa do século XVI e globalizado em nosso tempo, se traduz em uma acrítica presunção de que somos os escolhidos a levar ao mundo um estilo de vida individualista, insustentáveis, sem mordomia da criação e destruidor de tudo ao seu redor, na esperança de que um dia, Jesus venha aqui e nos leve embora pra um outro planeta onde tudo vai ser dourado e com luzes de neon.

Chega de loucura.

A Nova Jerusalém desce à terra, o filho encarna na nossa realidade, a restauração de todas as coisas e da vida com Deus se dá no tempo e no espaço criado para que isso ocorresse, este planeta.

Na minha concepção, é hora de arrepender-se. 

A igreja missionária que leva um estilo de vida destruidor ao mundo precisa se arrepender e olhar para Jesus. Para que isso ocorra precisamos ter a coragem de abolir a missão como heresia autoritária e promotora do estilo de vida ue destrói o mundo e assumir em seu lugar o serviço, a encarnação enquanto identificação com o outro, o diálogo no lugar da pregação e a proclamação de um novo modo de viver ao invés do anúncio de uma nova religião.

É hora de sermos libertos e arrepender-nos de querer libertar a outros para incluí-los em nossa escravidão como faziam os fariseus e levarmos a boa notícia de que os últimos serão os primeiros, de que o Reino é dos pobres, que o consolo está disponível a quem chora, que a paz que promovemos nos faz filhos de Deus, que na humildade está calcada nossa herança, que a promoção da justiça e da eqüidade satisfará a todos, e que não existe escassez mas só ganância a ser enfrentada, que para ver a Deus, o caminho é o da pureza de coração, a ser aprendida com as crianças, e que estamos no caminho quando nos insultam pelo nome de Jesus.

Para inverter a lógica por alguns caminhos talvez seja hora de:

Arrepender-nos de nosso estilo de vida e, humildemente, re-aprender a viver com os pobres

Igualmente arrepender-nos de olhar para o pobre como alguém miserável por não ter acesso ao que temos, mas sim miserável por ter sido induzido a pensar que são estas as coisas que lhe farão bem.

Abrir mão do desenvolvimento como objetivo de vida e sim abandoná-lo em prol de um outro conceito a ser aprendido com aqueles que o desfrutam nas bases sociais: a vida plena.

Abandonar o progresso como benvindo e reconduzir como referência o caminho.

Deixar de compreender necessidades como algo que deva ser suprido e assumir que elas são limites da vida, que podem ou não ser superados, que nos animam o desejo e a esperança, a inventividade e a autonomia.

Relativizar os direitos baseados nestas mesmas necessidades, deixando de lado e não dando importância às serpentes que nos oferecem o caminho e a possibilidade de garanti-los, reconhecendo nas vozes que nos afirmam estes direitos, nada menos que o inimigo de nossas almas.

Que a satisfação de necessidades é o caminho de fazer-nos escravos, que o contrário: viver com elas, adaptar-nos a elas e abriga-las como parte da vida são os aspectos que nos fazem livres, inventivos e criativos, logo semelhantes a Deus.

Que a mediação do dinheiro no suprimento de nossos desejos é o atalho fácil e artificial que se coloca no lugar da solidariedade, da troca, do compartilhar. E que ter nele a solução só aprofunda nosso estado de dependência.

Que viver no mundo e se esquivar de suas estruturas, relativizando sua importância é diferente de ser do mundo, adaptado e conformado aos seus esquemas.

Que “como ?” não é a pergunta, mas por que?, em lealdade a quem?, com que interesse?, pelo bem de quem?, em obediência a quem? e submissos a quem? são as perguntas a serem respondidas.

Em vista disso, invertamos nossa lógica definitivamente, e vamos aos pobres, para deles aprender e trocar com eles aquilo que podemos trocar. E tentar cumprir o amor a que fomos chamados, que começa com o arrependimento, a relativização de nossos compromissos e dependências com o mundo e em nos movermos para a liberdade de homens e mulheres sabidos, criados à imagem e semelhança de Deus.

2 comentários:

Gui disse...

Muito bom, tanto o texto quanto o vídeo.

Achei muito boa a comparação entre desenvolvimento (nosso melhor) e vida plena (o melhor de Deus). Também é essencial resgatar essa noção de que "necessidade" não é "carência", mas sim "o que não pode não-ser" (na filosofia, o contrário é "contingência").

Isso tudo tem a ver com o que o Illich escreveu, e deve ter a ver com o texto do Esteva (ainda vou ler). Também tem a ver com uma leitura honesta da Bíblia...
tem a ver com muita coisa, e a minha suspeita é de que essas vozes estejam mesmo certas.

Isso tudo só me faz pensar como eu estou muito longe de viver Deus - longe dEle próprio.

André Egg disse...

Indo mais longe com os conceitos que você propõe, os pobres não são os que não tem dinheiro. Pelo contrário, somos pobres os que somos escravos do dinheiro, do sistema mercado/Estado que você tão bem analisa e critica.

Admiro em teu texto a recuperação da capacidade cristã de ser radical, de propor uma vida que não se acomoda ao mundo, apesar de estar nele. Esta utopia permanente que podemos chamar de Reino de Deus, conceito tão mal-compreendido.

E assino embaixo de tua crítica à igreja institucional. Tenho sempre insistido com meus conhecidos que os Evangelhos seriam muito bem contextualizados se os lêssemos hoje substituindo "fariseu" por "evangélico".

Já não consigo mais concordar com a teologia e a cristologia que compõem o fundo ideológico do teu texto. Mas vejo com muito bons olhos a maneira como você repensa a escatologia.

Você é um dos poucos cristãos que conheço a quem me atrevo a chamar de irmão.