A minuciosa divisão de trabalho em uma economia de mercado afasta-nos de nossas competências e as vende de volta para nós.
Jeremy Seabrook
guardian.co.uk, Terça-Feira 4 de Agosto de 2009 18.30 BST
A divisão do trabalho nas sociedades ricas é tão minuciosa e particular que o conhecimento especializado de um indivíduo é muitas vezes hermeticamente separado do de outras pessoas. “Não é o meu domínio. Eu não sou um perito. Eu não tenho conhecimento sobre esse período. Isso não é responsabilidade minha. Não é o meu departamento. Eu não sei nada sobre isso.” Estas são algumas das frases com que as pessoas explicam um estreitamento da apreensão do mundo.
Como conseqüência muitas competências humanas básicas comuns se perdem. Uma concentração sobre a especificidade é acompanhada pela perda de outras formas de conhecimento, que chegam a parecer arcaicas no mundo moderno. Abandonar habilidades básicas pode parecer libertação, especialmente a princípio - esquecer de como cultivar, ou mesmo como preparar, a nossa própria comida, como fazer roupas simples, como prover-nos de abrigo: transferir essas tarefas para os outros é colocar de lado um grande fardo.
Mas, uma vez perdidas, estas simples realizações se tornam irrecuperáveis; e mais, preciosas capacidades humanas também entram em decadência e se trasformam no trabalho de alguém: saber o que fazer em tempos de necessidade, de doença e de morte, como se comportar diante do sofrimento; mas também como celebrar nossas próprias vidas através de nossas próprias histórias, canções e poesia - tudo isso é executado no interesse de uma cada vez mais elaborada fragmentação da função social.
Isto dá uma idéia de por que há muito debate sobre se uma nova geração está se tornando mais esperta ou menos instruídas do que aqueles que existiram antes deles. Por um lado, existe uma subcultura rasa, simplificadora, com a perda de habilidades anteriormente tidas como certas, que corta o conhecimento da história e da literatura; por outro, melhoria nos resultados de exames, um maior "estado de percepção", diferentes formas de consciência, a aquisição de novas competências - a coordenação mão-olho dos jogos de computador, a destreza e a acuidade da juventude. O argumento é inconclusivo. Talvez, naquilo que parece uma contradição, ambas as partes contêm uma certa medida de verdade, e os jovens podem tornar-se simultaneamente mais e menos capazes.
A única coisa que você precisa saber em sociedades" avançadas" ou "desenvolvidas" que vivem espasmos de perpétua reforma e modernização é a forma de obter, adquirir, ganhar ou fazer dinheiro, porque com isso você pode ter tudo. A série de verbos é significativa, pois abrange tanto modos lícitos e ilícitos de lidar com a questão. Uma vez que a grande maioria de nós dependemos de um salário ou de vencimentos para maximizar a receita, temos de saber bem alguma coisa sobre algo. No entanto, na aquisição e intensificação do conhecimento específico, o mais provável se torna que o domínio de outras capacidades irá afundar no esquecimento. A complexidade da divisão do trabalho é acompanhada por uma redução nas áreas de competência ativa.
Esta é a forma como o dinheiro tanto habilita quanto desabilita: ele nos permite comprar tudo o que for necessário para uma vida plena e criativa, mas também nos divorcia cada vez mais do que Ivan Illich chamou de "nossa capacidade inata de curar, consolar, se emocionar, aprender, construir nossas casas e enterrar os nossos mortos "; o trabalho daqueles que agora servem nossas necessidades já foi um dia uma propriedade comum, mas são agora qualificações profissionais ciosamente guardadas. Desta forma, a ignorância coexiste com conhecimentos altamente especializados. Num certo sentido, somos todos sub-contratantes existenciais, como a personagem do drama de Villiers de l'Isle Adam, Axel, que disse: "Para viver a vida, nossos servos farão tudo isso por nós".
Este mecanismo econômico e social é por si só gerador da real dependência cultural. É frágil e facilmente perturbado: tudo que se precisa para jogá-lo na desordem é uma greve de entregas aos supermercados, uma interrupção no sistema de energia, uma calamidade natural que bloqueie o delicado - e ao mesmo tempo pesado - processo pelo qual o pão nosso de cada dia vem a nós. A imagem de prateleiras vazias em supermercados, uma ruptura no fornecimento a gasolina, uma tela de TV em branco, são assustadores lembretes da nossa dependência de um sistema que toma de nós tanto quanto, ou mais, que os rendimentos, mas que deve ser mantido a qualquer curso custo.
Esta subordinação é o oposto das liberdades das quais a nossa sociedade supõe ser a suprema encarnação. A escolha, a democracia e a liberdade de que desfrutamos são altamente subordinadas ao interesse de outros; mas estas desaparecem facilmente, uma vez que o nosso objetivo social e econômico se separe dos deles - as nossas próprias necessidades são enfatizadas, a nossa própria indispensabilidade na estrutura de trabalho e, acima de tudo, o mais privado de todos os nossos relacionamentos (não mais o amor ou mesmo sexo): a secreta, sagrada comunhão que subsiste entre nós e o nosso dinheiro.
Fora da nossa própria esfera de conhecimento, somos uma nação de incompetentes banhados a ouro, pois no mundo desconhecido da perícia de outras pessoas, tateamos na ignorância e no desamparo.
Isto é o que o fenômeno aparentemente benigno da "economia de mercado" realmente significa. Por seu crescimento e expansão, ela pode se apropriar de mais áreas da proficiência humana, reformula-las e vende-las de volta. Isto envolve uma implacável garimpagem, não tanto das necessidades humanas, mas acima de tudo das competências humanas. Ela nos rouba habilidades e os resultados desse roubo de coisas miúdas são vendidos em uma nova forma. Se estamos constantemente fascinados por quaisquer novidades que aparecem à venda nas vitrines do mundo, isto acontece porque, muitas vezes, eles encarnam a predação de incursões relâmpago em nossos recursos internos, e na verdade, são um paralelo da pilhagem dos recursos materiais homólogos. Comprar, neste contexto, torna-se não tanto um vício ou uma terapia mas um esforço desesperado para tentar recuperar a perda de algumas capacidades e aptidões através da conjuração e invocação do poder do dinheiro.
É um truísmo dizer que nos ocupamos agora de uma "economia do conhecimento". Isso é um termo ambíguo, pois que sugere também uma economia de conhecimento, aquele tipo de frugalidade que o torna uma mercadoria escassa, uma pela qual nós pagamos muito caro e duplamente, uma vez que não somente ela foi removida de nossas mãos, cabeças e corações, mas também por que ela só pode ser recuperada pagando (caro) por isso. Não é, como afirmam alguns moralistas, que "necessidades artificiais" ou desnecessárias são criadas pelo consumismo e pelo crescimento do mercado. Antes é, sim, que algo indispensável tem sido permanentemente usurpado, o qual nunca poderá ser adequadamente compensado pelo regime de resgate por meio do comércio varejista global, uma vez que permanece inerte -capturado e armazenado – no crescente conjunto de coisas à disposição diante de nós. Se tais produtos e serviços nos seduzem e encantam, é porque eles um dia nos pertenceram."
5 comentários:
O texto machuca, pela verdade contida, e é de uma tremenda felicidade!
Pena que abrimos mão do essencial e, em nome dos deuses do Mercado, vendemos nossa alma no altar do “conhecimento e do consumismo”!
A conseqüência? Passamos a cultuar e por isso, consumir, o que antes sabíamos fazer!
Para refletir mais sobre o assunto, recomendo (modéstia às favas - como disse o nosso vice-presidente, ao responder ontem a um jornalista sobre como ele estava reagindo em sua luta contra o câncer – ao que ele disse, “modéstia às favas, estou reagindo muito bem...”), ainda uma leitura: POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens da nossa época. Esse livro, escrito em 1944 (!!!), retrata bem a questão do “progresso” x a desarticulação das pessoas. Sugiro que compre... ou me peça emprestado!
Abraços!
Gustavo.
é isso, para os que quiserem ir nessa toada : Toward a history of Needs< Illich, Ivan. Uma boa complementada à sugestão do Gustavo.
Saudades amigo....
E as pessoas são de uma certa forma conscientes disso tudo. Presenciei um diálogo onde uma colega de trabalho ralhava com a outra por ela perder tempo cuidando da casa e dos filhos. Ela era uma analista master e sua hora de trabalho valia mais do que essas atividades braçais.
Como disse Illich, as ferramentas de hoje em dia não possibilitam a convivialidade...
Claudio, realmente esse texto é a sua cara. Gostei muito. Principalmente quando ele diz:
"This is how money both empowers and depowers: it permits us to buy in all that is necessary for a full and creative life; but it also divorces us increasingly from what Ivan Illich called "our native capacities for healing, consoling, moving, learning, building our houses and burying our dead"; the work of those who now service our needs were once common property, but are now jealously guarded professional qualifications."
Fico feliz de agora poder me dedicar a "atividades braçais" aqui na roça Rafz...
Beijos
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